Documentos antigos revelam início de Piracicaba
Digitalizados e transcritos, documentos de 1784 podem ser baixados pelo público
Em meio a livros antigos, prateleiras repletas de CDs e DVDs, fotografias antigas e obras de
arte que já figuraram em exposições e concursos da cidade, repousa, sob olhares atentos, no canto da mesa da sala de reuniões do Setor de Gestão de Documentos e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, uma curiosa encadernação de capa dura, em tons terrosos, marrons. Com luvas de látex nas mãos e máscara no rosto, Giovanna Fenili Calabria, arquivista e chefe do Setor, folheia cuidadosamente as grossas páginas já amareladas pela ação do tempo, repletas de letras cursivas que permitem ao observador, mesmo não treinado, ter de pronto a impressão de que trata-se de algo elaborado há muitos anos. “É o documento mais antigo do arquivo da Câmara”, revela Giovanna.
Intitulado “Memória do Estabelecimento da nova povoação de Piracicaba junto a margem
dalém do Rio de mesmo nome e da sua mudança e de edificação para á parte daquém do dito rio”, a encadernação é um compilado de três documentos, manuscritos em 1784, e que
revelam facetas da história oficial da povoação de Piracicaba, iniciada há 254 anos, em 1º de agosto 1767.
Para melhor contextualizá-los, no entanto, cabe aqui uma breve digressão.
Antes da povoação oficial – O que é conhecido hoje como cidade de Piracicaba já foi, muito antes da chegada do homem branco ao Brasil, terra de índios. Existem poucas informações desse passado remoto, mas é dele a origem do nome da cidade, que em português significa “peixe que chega, ou lugar aonde chega o peixe”.
Cecílio Elias Netto, jornalista e “contador de histórias”, como ele mesmo gosta de se identificar, diz que “se você pegar toda a nossa história, toda a nossa realidade, ela é primariamente, primitivamente indígena. Veja bem, Piracicaba, o rio, é uma palavra indígena. Se você pegar alguns bairros de Piracicaba, você também vai ver essa influência: Tupi, Caiubi, Bongue, são apenas alguns exemplos”.
A historiadora Marly Therezinha Germano Perecin, em seu artigo “Piracicaba, bocado sertão: o Porto, a Paragem, a Sesmaria, a Povoação”, publicado na Revista nº III do IHGP – Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, traz que, nas décadas seguintes à chegada portuguesa ao Brasil: “a paragem do Piracicaba era conhecida remotamente pelos sertanistas de São Paulo. O porto, estabelecido ao pé do Salto, era buscado pelos entradistas provenientes de ltu, através do caminho fluvial do Tietê e do Piracicaba, após sete a oito dias de viagem. Outros caminhos conhecidos pela cultura indígena também traziam à Piracicaba, mas este era o preferido pelos antigos paulistas”.
Os primeiros registros de tentativas de ocupação propriamente ditas das terras piracicabanas pelo homem branco aparecem já no final do século 17. Mário Neme, no livro “História da Fundação de Piracicaba”, traz que, em 1693, Pedro de Moraes Cavalcanti requereu o título de uma sesmaria, que abrangia “uma e outra banda do rio, ficando-lhe o salto no meio”. Este primeiro intento povoador, no entanto, carece de grandes documentações, como lembra Maria Celestina Teixeira Mendes Torres, no livro “Piracicaba no século XIX”.
Picadão de Mato Grosso – Com a descoberta de ouro em Mato Grosso por volta de 1720, inicia-se uma corrida para a abertura de caminhos terrestres ligando São Paulo a Cuiabá, o chamado “Picadão de Mato Grosso”.
A abertura do trecho do Picadão, ligando por terra Itu a Piracicaba, ocorre às expensas do sertanista Luís Pedroso de Barros e conta com a participação do ituano Felipe Cardoso que, entre 1722 e 1723, sai de sua cidade natal e rasga os sertões do Tietê e Capivari até chegar a Piracicaba. “O início do trecho do picadão aberto pelo Felipe Cardoso, partindo de Piracicaba, é a nossa atual rua Moraes Barros”, diz Cecílio.
Concluído o trecho, Felipe Cardoso, em 1723, estabelece-se junto ao porto já conhecido pelos antigos sertanistas, ao pé do salto do Rio Piracicaba e, em 1726, torna-se sesmeiro destas terras, fazendo delas uma espécie de entreposto de víveres e mantimentos para as expedições que partiam de Itu e do porto de Araraitaguaba (hoje Porto Feliz) em busca das minas de ouro. A incipiente povoação, no entanto, sofre um importante revés, quando, em 1730, uma ordem da Coroa proíbe os caminhos terrestres para o Mato Grosso, como medida de combate aos descaminhos do ouro e o não pagamento de impostos. “A interdição do Picadão de Mato Grosso deixou consequências sobre o sertão do Piracicaba, arruinando as esperanças dos sesmeiros e posseiros que, logo após a abertura do caminho, buscaram estabelecer-se nos pontos estratégicos, particularmente, entre ltu, Capivari e o porto de Piracicaba”, escreve Marly Perecin no artigo já citado.
Em 1760, Felipe Cardoso transfere a posse da sesmaria de Piracicaba para seu sobrinho, Francisco Cardoso de Campos.
A nova povoação de Piracicaba – A retomada do interesse pelas terras de Piracicaba ocorre somente na segunda metade do século 18, em um momento em que Portugal e Espanha empenham-se em fortificar e defender suas fronteiras nas Américas.
Na recém-restabelecida Capitania de São Paulo, o então capitão-general, Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão, o Morgado de Mateus, inicia um intenso processo de recrutamento para compor os contingentes a serem empregados na defesa dos territórios mais ao Sul contra as investidas castelhanas e no adensamento populacional nas terras da Coroa.
O segundo ciclo povoador de Piracicaba surge neste contexto de militarização e ocupação civil do território, em julho de 1766, por Antônio Correa Barbosa, que gozava de prestígio junto aos dirigentes da capitania em razão de sua atividade como armador, é nomeado diretor-povoador de Piracicaba. Tinha ele, à época, 35 anos, e “revelava-se moço pobre, recém-casado; provavelmente ligado às atividades do porto de Araraitaguaba, à construção de embarcações e à navegação monçoneira.” (Marly Therezinha Germano Perecin, Revista IHGP, vol. 4)
Partindo entre os dias 25 e 26 de julho de 1767 do Porto de Araraitaguaba, chega à margem direita à jusante do Rio Piracicaba, ao pé do salto, no dia 1º de agosto daquele mesmo ano. Vinha seguido de “sua gente”, de parentes e de outras famílias pobres que o acompanhavam. Descumpria, portanto, as ordens iniciais do Capitão-general, que ditavam que a povoação deveria ser instalada na foz do Piracicaba no Tietê, cerca de setenta quilômetros distantes daqui.
“Era muito primitivo, eles tinham que viver realmente da natureza. Então, veja bem, quando você está à beira de um rio, você tem a sua alimentação básica, que é o peixe. Então, essa foi realmente uma das bases da vida dos primeiros povoadores”, diz Cecílio Elias Netto.
Além do estaleiro dedicado à produção de canoas, sob o comando de Antônio Correa Barbosa e seus familiares – que tiravam vantagem das excelentes madeiras aqui existentes e que já rareavam em outras localidades – Piracicaba, que era território de Itu, servia de retaguarda à fortaleza do Iguatemi, na fronteira com o Paraguai. Construída pelos portugueses, em 1767, a fortaleza foi conquistada, 10 anos depois, pelos espanhóis.
Piracicaba torna-se Freguesia em 1774 e, no ano seguinte, já registra 231 moradores e 45 fogos (sinônimo de casas, habitações), como traz Mário Neme.
Mudança de margem – Em junho de 1784, os moradores de Piracicaba solicitam ao capitão-general Francisco da Cunha Menezes a transferência da margem direita para a margem esquerda do rio, pedido prontamente atendido no mês seguinte.
Para Cecílio Elias Netto, além do aproveitamento do terreno para a agricultura, em especial à cultura da cana, que será a próxima força motriz econômica de Piracicaba, a mudança de margem também se deveu à inexistência de pontes, “o que dificultava o acesso por terra para Itu e até mesmo para a capital”.
Os documentos da Câmara – Assinados por ninguém menos que o próprio povoador, Antônio Correa Barbosa, por Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, o Capitão-mor de Itu e por outras personalidades que atuaram neste início de Piracicaba, o primeiro destes documentos traz um breve relato do terreno encontrado à margem direita do rio, local inicial da povoação de 1767: “mui saudavel e o seo terreno alegre, fertil, cheyo de [salsaparrilha] excellente para todo o genero de cultivo”, e fala da abundância de peixes do Piracicaba, “hum nome gentílico, que no idioma português significa peixe que chega ou lugar aonde chega o peixe”.
As transcrições dos documentos, segundo Giovanna, são realizadas linha a linha, de acordo as Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos, “buscando manter a ortografia original na íntegra, sem nenhuma correção gramatical. Palavras parcial ou totalmente ilegíveis, mas que podiam ser identificadas pelo contexto, foram colocadas entre colchetes, e o sinal […?] representa a palavra não identificada”, diz a arquivista.
Mais à frente no documento, uma descrição dos povoadores que aqui chegaram na companhia de Antonio Correa Barbosa: “administrados vadios, dispersos e vagabundos, que mandou congregar aquelle Excellentissimo Governador”. Na sequência, completa, “individuos de melhor condição concorrerão para este lugar, convidados da sua fertilidade e crescendo o povo”.
Há, ainda, a menção à ausência de um pároco, figura essencial à vida da população no período colonial, “por espaço de seis annos, dez mezes, e vinte dias subjeitos a vós Parochial de Ytu, com grave detrimento pela distancia de quatorze legoas”. A lacuna de liderança espiritual na vida da incipiente povoação é preenchida temporariamente, quando o “Parocho o Reverendo Padre João Manuel da Sylva Presbitero secular de virtude e letras tomou posse da Igreja no dia vinte e hum de junho do anno de mil settecentos e settenta e quarto.”
O segundo documento, segundo a arquivista, “é uma cópia da ordem original, enviada pelo então Governador e Capitão-General da Província de São Paulo, Francisco da Cunha Meneses, ao Capitão-Mor de Itu, em 7 de julho de 1784, determinando a mudança da povoação para a margem esquerda do rio”.
Dentre outras coisas, pode-se ler no documento: “Ordeno a […] que com o Capitão Antonio Correa Barboza Povoador dela a [possão] mudar de onde se acha e situa e a na referida paragem da parte de cá do Rio Piracicaba logo abaixo do salto, ou em todo o intervalo deste athé de fronte da Barra do Ribeyrão Corumbaty, aonde melhor terreno houver para a situação, principiandose esta com os assentos eternos necessarios para [constar], para o que convocara [..] todas as pessoas que quiserem concorrer e ajudar..”
O terceiro e último documento da encadernação versa sobre a delimitação do novo terreno, já na margem esquerda do rio, e traz que os moradores, depois de “assistirem ao Santo sacrifício da Missa, e implorarem a graça de Espirito Santo por intercessão da soberana Imperatriz do Céo e da terra a sempre Virgem Maria nossa Senhora, e receberem a bemção do Santo Padroeiro desta Povoação, forão com o Reverendo Parocho ao lugar destinado para a sua mudança e estabelecimento e sendo ali delineou o dito Mestre Entalhador e Arruador a beneplácito de todos hum pateo com quarenta e seis braças em quadra, seguindo de norte a sul e de leste a oeste para edificarse a Igreja Matriz (…)
Com o aumento da ocupação das terras à margem esquerda e o crescimento populacional, que culmina com a sua elevação de Freguesia à categoria de Vila, Piracicaba conquista a sua independência administrativa de Itu, em 1822. Essa parte da história, no entanto, é o tema da matéria da próxima semana.
Acesso aos documentos
Em comemoração aos 254 anos de Piracicaba, a Câmara disponibiliza, em anexo a esta matéria, a cópia digitalizada e as transcrições dos documentos preservados pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo.
Fonte: Câmara Municipal de Piracicaba