Estou escrevendo na manhã de sexta-feira, dia 28 de abril, este artigo, que o leitor amigo encontrará no seu Jornal de Piracicaba no próximo domingo, dia 30. Entre hoje e depois de amanhã (ou seja, no dia 29) deverá ocorrer (isto estou escrevendo eu, mas, por favor, leia que já ocorreu…) o lançamento de dois livros, na Biblioteca Municipal de Piracicaba. Ambos estão saindo com o selo do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba e com o patrocínio da Prefeitura Municipal da nossa cidade.
João Umberto Nassif está publicando “História Oral em Piracicaba”, com uma seleção de entrevistas que fez a pessoas muito diferentes, de profissões e idades também muito variadas, representativas da história recente de Piracicaba, Comerciantes, mães de família, políticos, empresários, motorneiros de bonde, esportistas, donos de circo, sacerdotes, professores universitários, membros das Forças Armadas – todos têm vez nesse livro que constitui um retrato vivo da Piracicaba em que vivemos e que tanto amamos.
Nassif já entrevistou perto de mil pessoas, nos últimos 30 anos, produzindo um amplo material de estudo e pesquisa para a compreensão da vida cultural, social e econômica de Piracicaba. É um trabalho monumental, de grande envergadura intelectual, realizado com metodologia científica mesclada com simpatia árabe, com muita naturalidade e descontração. Horas e horas de trabalho metódico foram consumidas para transcrever e editar as fitas gravadas e, assim, colocá-las à disposição de futuros historiadores que escrevam sobre Piracicaba na transição dos séculos XX para XXI.
O segundo dos livros lançados chama-se “Teoria e Prática de História Oral” e é deste escrevinhador que vos escreve. Como consta de seu título, é um livro teórico, expondo a importância e a atualidade da História Oral e também é prático, indicando modos e métodos de se fazer e registrar essa história.
Na perspectiva historiográfica atual, atribui-se enorme importância à memória coletiva dos povos, entendendo-se que essa memória se transmite não somente por meio de documentos escritos, mas também – e sobretudo – pelas vias da oralidade.
A memória coletiva tem grande importância para que as sociedades humanas (seja qual for a natureza delas) adquiram a consciência de sua identidade própria. De modo especial ela é importante no caso de grupos minoritários que sentem necessidade de se afirmar – e até mesmo de adotar uma atitude de resistência – quando inseridos no contexto de sociedades maiores dentro das quais correm o risco de ser absorvidos.
História Oral, em sentido amplo, é aquela na qual o historiador utiliza como fontes documentos não escritos. Em outras palavras, quando se informa dos acontecimentos por depoimentos de pessoas que presenciaram os fatos narrados e deles dão testemunho; ou quando recebe informações por meio de uma tradição oral mais próxima ou menos dos acontecimentos historiados.
Em sentido mais estrito, porém, designa-se como História Oral aquela que se vem realizando desde meados do século XX, quando a generalização dos recursos técnicos permitiu a gravação de conversas para a posterior transcrição de testemunhos falados.
A utilização de narrativas orais como fontes históricas foi durante muito tempo desprezada pela Historiografia influenciada pela Escola Positivista do século XIX, a qual somente aceitava como válidos e confiáveis os documentos escritos, de preferência emanados de autoridades oficiais. Nessa ótica hoje superada, narrativas orais eram consideradas como algo característico de povos primitivos e não evoluídos, de cultura meramente oral. A partir de 1929, porém, por influência da Escola dos Anais, ampliou-se muito o conceito de fontes históricas utilizáveis por um historiador – o que ensejou um extraordinário desenvolvimento dos estudos históricos.
Durante a segunda metade do século XX, cada vez mais se valorizou a História Oral, entendida numa dupla perspectiva: em primeiro lugar, como meio de obter informações sobre fatos remotos que foram conservados na memória coletiva dos povos ou grupos humanos, sendo transmitidos de geração em geração; em segundo lugar, para realizar pesquisas sobre acontecimentos mais próximos, mediante depoimentos de pessoas que os vivenciaram.
No meu livro, procurei levar os leitores a compreenderem, numa perspectiva teórica e prática, como funciona o mecanismo da memória nos indivíduos e em grupos sociais (étnicos, associativos, religiosos, profissionais etc.), e como se transmitem, por meio da oralidade, conhecimentos e informações guardados na memória das pessoas e dos grupos sociais. Mostrei como esses conhecimentos e informações compartilhados pelos elementos do grupo social englobam, de modo explícito ou tácito, todo um conjunto de valores que aquele grupo também compartilha, de modo a se constituir naturalmente a sua Cultura – no sentido amplo em que atualmente se costuma entender esse termo. Destaquei como essa memória compartilhada é importante para que aquele grupo social se conscientize de sua identidade e de sua alteridade. E, por fim, discorri sobre os principais métodos utilizados habitualmente por pesquisadores em fontes orais e os cuidados que devem ser tomados para se evitar os erros e desvios frequentes nos iniciantes em matéria de História Oral.
Piracicaba, 02/08/2023
Armando Alexandre dos Santos
Doutor na área de Filosofia e Letras, membro da
Academia Piracicabana de Letras e do IHGP