Pode soar com estranheza a comemoração do aniversário de uma necrópole. A breve história dos cemitérios no Brasil não pode ser desassociada da Igreja Católica que por muito tempo deteve o monopólio dos enterramentos e protocolos funerários. Eram nos templos e áreas anexas que ocorriam os enterramentos e ritos fúnebres que uma morte católica exigia.
No início do século XIX, a teoria dos miasmas motivou a Coroa a retirar os mortos das Igrejas e consolidar os cemitérios “extramuros ecclesiam “, aqueles localizados fora da área de domínio religioso. Aquilo que parecia ser a secularização da morte e seus espaços causou muitos transtornos e debates, como o ocorrido em Salvador-BA em 1836 e que ficou conhecido como “cemiterada”, revolta que destruiu o novo espaço para enterramentos e evidenciou que a ruptura com a Igreja não seria tão simples.
Além das funções religiosas os cemitérios são em sua essência um importante e essencial aparelho sanitário que se tornou cada vez mais necessário frente ao aumento exponencial da população das cidades.
Na cidade de Piracicaba foram quatro os cemitérios, com registros oficiais, que fizeram e fazem parte de nossa história. Lembrando que muitas pessoas foram sepultadas em fazendas e áreas rurais.
O primeiro local de sepultamentos documentado na cidade se localizava onde hoje se encontra o Colégio Moraes Barros, mais especificamente no largo da Boa Vista. Ali, em 1836 já aconteciam os enterramentos das pessoas mais pobres, escravizados, condenados e acatólicos, que eram proibidos de serem sepultados em domínios católicos. Concomitante ainda acontecia sepultamentos nas Igrejas, expressando o poder da tradição frente às mudanças.
A Irmandade da Boa Morte, que tinha como um dos seus idealizadores o artista Miguelzinho Dutra, construiu em 1851 seu próprio cemitério que, pelos registros localizava-se nos fundos da Igreja da Boa Morte que já acolheu o educandário das Irmãs de São José e hoje abriga o colégio Dom Bosco Assunção. Esse cemitério foi construído para receber os membros da referida irmandade, religiosos e acabou incorporando a elite da cidade.
A grande comunidade alemã que se instalava em Piracicaba, em sua maioria protestante e proibida de sepultar seus mortos em terreno católico, reivindicou um local para inumar seus mortos e conseguiram em 1860 autorização para construção de um espaço com um pouco mais de 700m² naquele que posteriormente seria o Cemitério da Saudade.
Com as constantes reclamações de conservação do espaço de enterramento que se localizava no largo da Boa Vista, o poder público inclinou-se para encontrar um local definitivo para construção de um cemitério publico e laico, isso 47 anos depois (1825 – 1872) das primeiras designações da Coroa para construção de espaços destinados aos mortos fora da igreja.
Por fim, em 1872 é decidida a construção daquele que ficou conhecido mais tarde como Cemitério da Saudade, dividindo muros com o Cemitério dos Alemães (1860) e que teve sua inauguração oficial em 02 de dezembro de 1872.
O cemitério da Saudade guarda um rico acervo artístico e histórico e é um importante instrumento para se entender nossa cidade. É ali que conseguimos observar as tensões sociais e observar, como em um espelho, o reflexo da cidade dos vivos.
Comemorar seu aniversário de 150 anos é lembrar a trajetória de nossa cidade, seguindo do fim para o começo. De importantes personagens políticos, artistas, médicos, barões até a grande massa desconhecida que repousa naquele espaço e são, com certeza os mais importantes moradores do local, pois ajudaram efetivamente a construir a nossa Piracicaba.
Piracicaba, 02/08/2023
Paulo Renato Tot Pinto
Historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba