Problema recorrente, para os estudiosos e os interessados na crise do ensino brasileiro, é o dos livros didáticos.
Ainda sou do tempo em que os livros didáticos eram poucos e, sobretudo, eram duráveis. Permaneciam válidos por anos a fio. Costumavam ser repassados, no final de cada ano letivo, a alunos da turma seguinte. Serviam, por vezes, a vários irmãos; como as roupas de antigamente, também os livros didáticos iam sendo passados dos irmãos maiores para os menores.
Nem se pensava em livros didáticos como os atuais, válidos apenas por um ano e que servem, ao mesmo tempo, como livro de textos e caderno de exercícios dos alunos. São, na verdade, produtos descartáveis e de pouca duração. E também, ressalvadas as exceções, têm conteúdo muito padronizado e bastante questionável.
Penso que um professor que tenha coragem de romper com a hegemonia (uso aqui a palavra quase em sentido gramsciano) dos livros didáticos e ouse abrir seus próprios caminhos, selecionando a cada passo textos correntes de interesse geral para, a partir deles, montar seu esquema de aulas, esse professor estará sendo verdadeiramente um educador, estará convidando seus alunos a fazer, do idioma, um uso pleno e diário, com liberdade e senso crítico. Tive, no passado, professores assim, mas foram poucos. A maior parte dos professores já preferia basear-se num livro, método muito mais cômodo para o docente.
A grande objeção que faço a livros didáticos correntes – tanto os de antigamente como os atuais – é que são habitualmente tributários das ideologias predominantes no momento. É muito difícil um livro didático escapar a essa “formatação”. A liberdade criativa de um autor de livro didático que, em tese, é plena, na realidade é muito limitada. Ele é obrigado a produzir um livro dentro dos parâmetros político-ideológicos predominantes no Ministério da Educação de seu tempo. Se acertar direitinho o passo, pode ter seu livro recomendado pelo MEC e adotado na rede escolar. Se fizer coisa diferente, ainda pode ter relativo sucesso se conseguir encaixar seu livro dentro do “nicho” de alguma corrente minoritária, mas suficientemente forte para ter escolas próprias e um público consumidor fiel. Um marxista ortodoxo ou um cristão fundamentalista, por exemplo, ainda poderão encontrar um público minoritário, mas fiel. Se, porém, o autor não dispuser nem mesmo de um público fiel como esses, será puro quixotismo aventurar-se a lançar um livro didático discrepante da formatação geral.
Já recebi de editoras, várias vezes, convites para fazer livros didáticos, mais especificamente de História, de Filosofia ou de Ensino Religioso, que são as minhas áreas. Fui ver as diretrizes e não concordei com elas. Economicamente, para mim poderia ser ótimo negócio “acertar o passo” com o MEC, mas tal seria, no meu modo de entender, uma traição aos meus princípios éticos. Seria uma espécie de prostituição intelectual. Sempre recusei as propostas.
O professor deve servir-se do livro didático, usando-o na medida em que ele seja útil, mas não pode “formatar” as cabecinhas de seus alunos de acordo com o livro didático. Menos ainda pode deixar que sua própria cabeça seja “feita” pelo livro didático. O ideal será, a meu ver, até não precisar de livro didático, montando ele próprio seu curso, sem livro didático. Reconheço ser um ideal difícil, mas não impossível.
Tenho um amigo, doutor em História pela USP, professor talentosíssimo, que lecionou numa boa escola particular de Ensino Médio, de São Paulo, e era também coordenador pedagógico do Colégio São Bento. Seu método era não usar livro didático. Ele dava aulas atraentíssimas, que conduziam os alunos a verdadeiras “viagens” pelo passado e os incentivam a irem ler, por sua conta, sobre os temas expostos. Seus alunos, insensivelmente e sem esforço, se tornavam leitores e pesquisadores das matérias que ele expunha. As pesquisas que os alunos faziam iam sendo, em cadernos individuais, coligidas e transcritas, sob orientação do professor, que acompanhava o trabalho escrito a mão (e não em computador) pelos alunos. No método dele, o fato de as anotações serem feitas à mão, num caderno de capa dura, produzia um efeito psicológico muito importante: cada aluno ficava com a impressão de estar escrevendo um livro. De tempos em tempos, em reuniões de grupo, os alunos eram estimulados a permutarem informações, a fazerem circular seus cadernos entre os colegas, a trocarem críticas e sugestões, tudo sob a supervisão do professor. No final do ano, sem se dar conta, cada aluno tinha montado seu próprio manual de estudo e tinha, por assim dizer, escrito um livro próprio e individual. Nunca mais seriam esquecidas, ao longo da vida inteira, aquelas noções aprendidas em circunstâncias tão peculiares e prazerosas.
No início, alguns pais estranhavam o fato de um professor de História não usar livro didático. Mas logo ficavam agradavelmente surpresos com os resultados obtidos.
É pena que um bom exemplo desses não seja mais seguido. Ele poderia ser, também, aplicado a outras disciplinas, mormente na área de Ciências Humanas.
Piracicaba, 18/07/2023
Armando Alexandre dos Santos